José Reginaldo Inácio
De repente até pode nos incomodar a sensação de um ano sem fim: o sentimento de que 2020 não acabou. Mas, apesar da sensação de uma transitoriedade exaustiva, chegamos ao final de 2021.
Nessa travessia, a utopia ganhou traços marcantes da distopia como uma sobreposição, isto é, no contorno de um futuro pior, imerso em catástrofes e tragédias impostas, em sua maior parte por uma camarilha governamental sustentada pelos poderes centrais, econômicos, pela grande mídia, e, infelizmente, também pela indiferença coletiva, não há como negar.
Já pensaram o quanto nossos traços e comportamentos característicos têm cedido e se perdido nos últimos anos? É ruim pensar nisso. Muito mesmo. No entanto, nesses momentos, a indiferença não nos cabe, significaria dias bem piores. “A indiferença é o peso morto da história”, já dissera Gramsci2.
E, se recordamos Gramsci, cresce em nós a convicção de como é odioso conviver com os indiferentes, principalmente nessas ocasiões. Nelas a indiferença é ainda mais odiosa, porque representa o estágio mais elevado da crueldade, que, nesse caso, é a morte em seu real significado e é como se (ela) fosse a parte natural e aceita durante um suplício coletivo nacional, em que mais de 600 mil entes queridos foram exterminados. Entristece-nos, porém suas ausências dirão muito da pouca presença do sentir humano em nossas festividades.
O pior da indiferença, dizia Gramsci, é que ela “opera passivamente, mas opera. É a fatalidade; é aquilo com que se pode contar; é o que interrompe os programas, subverte os melhores planos; é a matéria bruta que se rebela contra a inteligência e a sufoca”, e, atualmente, nesse momento, a indiferença é parte de uma trama que legitima algumas das piores deliberações com as quais o povo brasileiro pode contar, notadamente, mais ainda, desde 2016.
Os traços da distopia vigem. As contradições e questões sociais vigoram. Uma sociedade onde a desigualdade e a injustiça imperam com maior tragicidade a cada dia. A fome, a carestia, o desamparo, o desalento, o desemprego, a violência, a insanidade física e mental, carreados pela sustentação propositada, da miséria e da ignorância, cujas marcas são de um Estado fracassado.
É por isso que, se lá, em 2016, a desesperança, disseminada como peste ativa, ganhou corpo, vigor, e, desde então, lançou-nos os auspícios do mal e da dor coletiva, hoje os sinais latino-americanos, de uma nova ordem, apesar da crise pandêmica, ou também por causa dela, nos dão esperança. Não podemos ficar indiferentes a eles.
Para nós, a quem a camaradagem é substrato revolucionário à realidade, líderes sindicais e de movimentos sociais populares, a realidade nos induz à emergência transformadora.
O presente nos impõe movimento para a travessia célere da ordem vigente. Para isso, há que se restituir a esperança. E ela só se mantém viva, como uma utopia ativa, candente, se se perseguir os ideais nos quais a razão não ceda a otimismos pueris e se mantenha nas trilhas da perseverança para uma transformação real.
Enfim, é tempo de plantar, todavia sem jamais admitir só num sonho de semeadura livre. Já superamos esse momento. Escolhas têm que ser feitas. A demarcação de onde o mal está e do qual deriva foi sinalizada. Superá-la não condiz com a indiferença.
Se “as revoluções se produzem em becos sem saída”, já dizia Brecht, então o porvir se revela para a boa nova e, 2022, sim, a sua forja, um novo ano!
1 Sindicalista. Diretor de Formação Sindical e Qualificação Profissional da Nova Central – NCST, Secretário de Educação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria - CNTI, em Brasília-DF, Diretor de Estudos e Pesquisa do Observatório Sindical Brasileiro Clodesmidt Riani e Diretor de Relações Institucionais da Associação Brasileira de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora - ABRASTT.
2GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes: escritos de 1917. Tradução de Daniela Mussi e Alvaro Bianchi. São Paulo: Boitempo, 2020.